Falta arroz doce!
No final da faixa “Pela Música Pt2”, do álbum Serviço Público, Sam the Kid faz um apelo: “Não tragam pudim, o pudim já está na mesa. Tragam arroz doce, falta arroz doce!”. Nesta música, é feita uma crítica feroz à indústria musical instalada, movida por interesses financeiros — o “pudim” —, e alimentada a esperança numa alternativa emancipatória: o arroz doce.
Esta metáfora aplica-se à política e, em particular, às miseráveis lideranças que têm estado na ordem do dia: começando pela de Netanyahu, passando pelas de Putin e Trump, pelas lideranças do Hamas e do Irão, chegando às de Von der Leyen e da NATO. Apesar do muito que as distingue, partilham um denominador comum: governam em função de interesses pessoais ou financeiros, não do bem comum. De nenhuma espero mudança genuína.
O genocídio que Israel leva a cabo em Gaza ilustra bem esta dinâmica. No início deste mês, era notória uma ligeira pressão europeia sobre o governo israelita. Este tentou dissipá-la ao começar uma guerra com o Irão. Foi recompensado: Macron adiou indefinidamente a conferência sobre a solução dos dois Estados (que estava marcada para 17-20 de junho) e Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, reiterou, num tweet delirante, o “direito que Israel tem de se defender”, enquanto as forças de ocupação prosseguem com a matança, dia após dia, de dezenas de palestinianos na proximidade dos pontos de (suposta) distribuição de ajuda humanitária.
Também por cá, não nos faltam homens em posições de liderança absolutamente incapazes, na sua cobardia, de insurreição face ao status quo de absoluto desrespeito pelos direitos humanos. De Montenegro a Rangel, passando por Bolieiro e Luís Garcia e chegando a Paulo e Pedro Nascimento Cabral: ei-los os yes-men, que preferem a segurança míope da anuência à coragem da dissidência.
A necessidade de mudança é evidente, mas faltam-nos redes organizadas de cidadãos empenhados. Interessa-me a construção de um futuro em que muita gente exerça, quotidiana e criticamente, a sua cidadania. Com esse objetivo em mente, tenho participado no desenvolvimento do site https://açores.net (com cedilha), que facilita o escrutínio das instituições regionais — Governo, Assembleia e autarquias — e disponibiliza análises diversas. É um espaço que se quer plural e participado, para que possa ser um contributo para a missão de criar uma sociedade verdadeiramente democrática.
Nesse sentido, saúdo as candidaturas de rotura que concorrem às autarquias e freguesias com o intuito de envolver, tanto quanto possível, a sociedade civil. Conto que façam campanhas de proximidade, ouvindo as pessoas — em particular, quem tende a abster-se; e espero que se batam pela implementação de assembleias cidadãs. Há muito trabalho pela frente, mas valerá a pena.
Numa época de retrocessos, ajuda olhar para os bons exemplos que nos chegam de outras partes do globo. De França, temos a eurodeputada Rima Hassan, que arriscou a sua segurança ao embarcar no veleiro Madleen com o objetivo de levar ajuda humanitária a — ou, pelo menos, de chamar atenção para — Gaza. De Nova Iorque, temos a mobilização de mais de 25 mil voluntários para a campanha (em curso) de Zohran Mamdani à câmara municipal. À escala dos Açores, seriam mais de 700 voluntários. Ainda não temos uma rede destas, mas lá chegaremos, com vontade coletiva.
Falta o arroz doce, mas os ingredientes e as receitas estão aí. Metamos mãos à obra, porque de pudim, francamente, já chega.