Atirar o barro ao mundo
No passado dia 19 de maio quem andasse por Ponta Delgada via uma cidade cinzenta. Ao testemunhar isso mesmo, senti o arrepio de ver que uma realidade que caminhava para esse cinzento acordou com as nuvens nesse tom já na ressaca eleitoral. Entretanto, regressei ao Porto. Por cá os dias estão quentes, com poucas nuvens no céu e um sol ardente que traz um céu azul e evidencia a verdura das folhas das árvores. Embaraçadamente relembrei-me que o «cinzento» é uma metáfora.
É uma metáfora por duas razões: os «tempos cinzentos» são sobre as nossas convenções, sobre a forma como a sociedade é organizada, esse cinza pode ser encontrado em alguns espaços, mas as coisas são a cores; e é esse o segundo lado, a realidade com a qual todos os dias lidamos é palpável e reflete em todo o intervalo das frequências visíveis, não vem nas nuvens escritos os maus augúrios, somos nós que temos de ter o olho aberto e perceber que as nossas mãos apalpam esse cinzento.
Hoje abundam os comentadores políticos. Têm eles mais tempo de antena que a maioria dos detentores de cargos públicos e servem muitas vezes mais como maquilhadores do que como intérpretes. Talvez seja por me movimentar na Filosofia, mas não consigo ver nesses esforços mais do que um chamamento de sereia para se aceitar uma narrativa. No que concerne ao que digo, não pretendo que tomem estas palavras como certas, mas como um incentivo a ligar ao cérebro. Poderão até chegar a conclusões diferentes das minhas, mas que sejamos capazes de fazer um esforço crítico, de pensar mais profundamente, informadamente e com honestidade intelectual.
Há cinco anos li Cartas a um Jovem Contestário de Christopher Hitchens, foi neste texto que pela primeira tomei contacto com o apelo ao «viver como se». Perante uma sociedade, uma lei, que nos impede de viver como consideramos mais correto, devemos viver dessa forma, abrindo uma brecha que possa servir de exemplo e permitir a visibilidade e, quiçá, a hegemonia cultural para conseguir moldar a sociedade.
Este termo do «como se» hoje soa-me familiar: trata-se do alemão «al sob» de Kant, usado por este filósofo como a necessidade de pressupormos um conjunto de aspetos, vivermos de acordo com eles, para podermos dar seguimento às nossas vidas. No caso kantiano, trata-se de pressupor que Deus existe e que a alma é imortal, algo que a ciência não pode provar, mas que, existindo, permite-nos um caminho para viver. Na verdade, este «als ob» também está presente no seu famoso imperativo categórico para agirmos moralmente: «age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza».
O «como se» de Hitchens, contudo surge de Vaclav Havel, do seu livro Moc bezmocných [Poder dos impotentes], um livro, como se pode imaginar pelo título, sobre resistência.
Se hoje acho importante trazer esta perspetiva é porque parece que temos de entrar neste modo de vigilância e tomada de atitude. Temos hoje a nossa Constituição sob ataque, particularmente no que respeita aos direitos humanos e a sua tradução nos serviços públicos. O «como se» relembra-nos que a política é mais do que o ato de votar, é participar. Participar nas nas instituições democráticas, mas também nas associações, nos sindicatos, nos grupos informais,… Participar é dar tempo à comunidade, seja sendo um candidato político ou ajudando numa peça de teatro da escola do filho. O mundo quotidiano é um mundo palpável que podemos moldar alheios às teias inteligíveis do poder.
O local, a comunidade, é o espaço de excelência para a livre e autêntica participação. Se cada um de nós moldar a sua, temos uma verdadeira democracia.