Dormir um pouco melhor
Na semana passada procurei convencer quem leu aquelas palavras de que há uma possibilidade para tomarmos em nós próprios a nossa liberdade. Glosei a visão do «viver como se»: estabelecermos as nossas regras e vivermos de acordo com elas. Talvez a melhor palavra seja máximas, princípios, motes,… o que importa é ter em mente que vivemos num mundo palpável e as convenções em si mais não são do que ideias. Mesmo legalmente é possível contrariar o discurso dos governantes: perante uma agenda que nos pretende dividir, podemos defender a solidariedade e participar em ações associativas ou sindicais, por exemplo. Mesmo em posições institucionais podemos fazê-lo: no mínimo reivindicando, no máximo propondo votações. O que aqui importa é a proatividade: é a possibilidade de moldarmos o próprio mundo, de conseguirmos caber nele. Não se trata, portanto, de uma ação individualista, mas de um compromisso individual para com a comunidade. Não nos esqueçamos, contudo, que uma pessoa é o suficiente para dar um exemplo, para mostrar que é possível e abrir caminho.
Mas isto é desafiante. Vivemos constantemente num estado de impotência. Como pode alguém conseguir motivação? Mesmo que haja tempo, com que energia mental? Será complicado para quem faz as contas contanto com os cêntimos conseguir pensar sequer na sua condição para considerar uma ação fundamentada. Duvido que as pessoas que estão nessas condições estejam as ler estas palavras, mas se tiverem: saibam que uma vida com condições é possível, que está nas nossas mãos essa possibilidade e que o vosso voto na urna vale tanto como o de um multimilionário. Para os outros, tudo isto vale, mas há que ir mais além: se há tempo, vamos moldar o mundo. Há que fazer algo, se não por nós, pela responsabilidade de deixar um mundo melhor aos nossos filhos. Certamente haverá quem leia este discurso como ingénuo. Não surpreende, afinal, este sistema ensina que as coisas têm de ser como são e que finais felizes só nos filmes (e não em todos). Temos de combater o cinismo que só provoca a inércia. Mas que motivação?
No seguimento das eleições de 18 de maio, nas quais a reflexão ética e humanista foi cilindrada, uma pessoa que me é próxima pelas lides políticas disse: nos primeiros dias fiquei tristíssima, agora estou só furiosa». Revi-me naquelas palavras, da inércia perante um mundo decadente, surge a responsabilidade de o reconstruir. A motivação não é mais do que o nosso instinto. Um instinto que condena as injustiças. Como é possível haver pessoas a passar fome e pessoas que ganham milhares de euros por segundo?! Onde está a linha mínima para a dignidade humana? Ligar a televisão é saber de mais mortes de crianças em Gaza – contudo desligar a televisão não resolve o problema. Se não nos motiva a utopia, um projeto de sociedade, então que nos motive a defesa da dignidade perante a miséria que hoje existe. É um combate multidimensional e multidirecional, qualquer pessoa é capaz de encontrar um papel que a si se adeque dentro da sua própria comunidade.
Quando se dá o primeiro passo já se sabe que não será um caminho fácil. É ir contra a corrente. É estar sempre a ser criticado por quem nada faz. É fazer muito sem reconhecimento. É fazer muito e sentir-se quase sempre impotente. Permitam-me uma autoajuda filosófica: abracemos uns textos estoicos ou epicuristas no que nos dizem sobre moderar as emoções, sobre aceitar o passado, o irreversível, e seguir, sem nunca esquecer os filósofos cínicos que nos mostraram que a razão é mais importante que a própria lei, que podemos tomar a vida nós próprios.