Podíamos falar sobre as distopias bem reais que acontecem pelo globo, os delírios discursivos que se traduzem em infernos. Devíamos, até, fazê-lo como alerta para não seguirmos esse caminho. Certamente, mas hoje já não temos de ir longe. No nosso país já foram passados os limites da decência. O verbo importa: eles passaram.

No passado dia 4 de junho vimos, em direito na televisão, uma pessoa a fisicamente condicionar outra, um homem a agarrar o pescoço de uma mulher. Infelizmente, este é um caso condenável longe de ser extraordinário: o patriarcado está enraizado na nossa sociedade, basta olhar para o horror da violência doméstica. Acresce ao choque do gesto, a identidade de quem o praticou: o nosso Presidente da República. Depois de já ter feito alguns comentários despropositados em relação ao corpo feminino, Marcelo Rebelo de Sousa considerou correto agarrar o pescoço de uma mulher que viu na sua presença uma plataforma para falar para a comunicação social sobre o genocídio com o qual somos cúmplices, apelando à participação numa ação de protesto nesse dia. Esta mulher interveio com todo o respeito e falou sempre calmamente. O nosso Presidente, contudo, foi incapaz de ouvir o que tinha a dizer, desvalorizando o caráter da pessoa, interrompendo, virando as costas. O que dizer de nós quando o nosso próprio Presidente se julga no direito de agarrar uma cidadã para a subjugar à sua palavra?

No passado dia 5 de junho a nossa Assembleia Regional viveu mais um lamentável momento. Enquanto se falava sobre o flagelo da toxicodependência no arquipélago, o deputado e líder do CHEGA ia deitando a sua verborreia usando termos como «trogloditas», «treta», «bandidos», …, um linguajar incendiário e vazio a que já nos acostumou (atenção a ente verbo), até que é capaz de soltar a maior das barbaridades: «Olhe, por mim era fuzilá-los todos». A leveza com que a pena de morte é encarada por este parlamentar é simplesmente aterrorizante. Igualmente aterrorizante foi a completa inércia do Presidente da Assembleia Regional: um total silêncio perante estas palavras. Bem sabemos de onde pode vir esse silêncio: no fim da sua performance medíocre, o deputado ameaçou chumbar uma moção de confiança e fazer cair o governo de Bolieiro, mostrando como a AD está dependente do seu apoio. Que democracia é esta em que a aritmética parlamentar, o ego de governar, importa mais que a dignidade humana?

Estes dois episódios são representativos da normalização do discurso de ódio, ou seja, da vulgarização da ameaça ao outro com base nas suas caraterísticas. Cada vez é mais fácil encontrar comentários violentos, os argumentos passam a ameaças. Cria-se um clima de tensão que culmina na própria violência – uma preocupação das próprias forças de segurança no Relatório Anual de Segurança Interna. Como estas pessoas são tão estridentes (omnipresentes digitalmente) parece que hesitamos em abrir a boca. O discurso do ódio está cada vez com maior tração.

A frustração é imensa e a paciência é escassa, querem-se pensos rápidos e encontrar bodes expiatórios é um. Em vez de pensarmos fundamentalmente e fundamentadamente sobre os problemas, preferimos atirar para um grupo social a culpa de tudo – para o outro. Atiramos para quem é mais fraco, claro. Exigiria coragem olhar os verdadeiros culpados, os donos disto tudo que todos os dias desafiam a dignidade humana. Eles ficam felizes a ver como o povo se divide e autoagride.

Normalizar o inormalizável é fechar os olhos à injustiça para com o outro, mas não nos esqueçamos que um dia esse outro seremos nós e ninguém restará para nos defender.